quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Educação para “vir-a-ser”


Investir em educação seria a solução para as constatações de José Mujica e Achille Mbembe? Contrapondo o capital, poderemos salvar nossa “vir-a-ser” humano em meio a luta desenfreada pelo “vir-a-ter”?

Segundo o relatório de 2018 da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations, a fome aumentou no mundo nos últimos três anos, porém ao compararmos com dados de 2005, a América Latina e Caribe conseguiu reduzir o quadro de desnutrição. Deixamos a marca de 9,1 % de subnutridos em 2005 para 6.1 % em 2017. Destaco a América do Sul que atingiu a marca de 5 % de pessoas subnutridas em 2017.

Esses números, apesar de ainda calamitosos, refletem as políticas de divisão de renda e combate a fome implementadas nesses anos para o combate e a redução da fome como: Fome Zero (Brasil), o Plano Nacional de Alimentação e Nutrição (Colômbia), os programas de segurança alimentar (Venezuela).

Dados como esse justificam as palavras do ex-presidente uruguaio José Mujica em entrevista dada a BBC: “Conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente (pobres) a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos.”
Mujica reflete que as políticas ajudaram uma pequena parcela da população a deixar a extrema pobreza, por ser algo urgente, por ser algo imediato em nossas consciências. Entretanto, para o ex-presidente não resolvemos nossos problemas mais básicos, o que resulta em condições brutais de vida.

Do ponto de vista político, o historiador, pensador pós-colonial e cientista político Achille Mbembe nos alerta que a era humanista está no fim. “Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo”.

Mbembe destaca que a noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Essas pessoas, com seus valores arruinados pelo capitalismo neoliberal estão convencidas que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e a ameaça existencial.

Deixamos de ter valores, afetos e racionalidade para ter dinheiro e comprar tudo aquilo que achamos necessário. Nos fundamentamos e construímos naquilo, que materialmente, consumimos. Os valores tradicionais tornaram-se infundados e a existência perdeu o sentido. Como consumidores, abandonamos o “vir-a-ser” para “vir-a-ter”, nos tornamos inumanos.

O princípio da filosofia Ubuntu me leva a refletir que temos uma saída para as dificuldades apontadas por Mujica e Mbembe. Para Ramose, 1999, ser humano é afirmar a humanidade por reconhecimento da humanidade de outros e, sobre essas bases, estabelecer relações humanas com os outros. Essa base de pensamento precisa ser incorporada à educação.

Ubuntu entendido como ser humano; um humano respeitável e de atitudes cortezas para com outros pode e deve se tornar uma base das relações humanas. Uma base que alicerce a pedagogia para que deixemos de construir consumidores-eleitores para desenvolver cidadãos conscientes de si e dos outros. Cidadão que tenham consciência de sua autonomia.

A educação que desenvolve a autonomia do pensar certo, leva ao fazer certo. Freire, 2016, insiste que a educação e todos aqueles que dela fazem parte, precisam assumir um pensar e fazer com ética. Em nossas escolas estamos criando consumidores ou cidadãos?

A escola, pública ou privada, pautada em valores éticos pode vir a ser o contraponto ao “vir-a-ter”. O investimento na educação formal e não formal que valorize ideais humanísticos e de consciência autônoma do “vir-a-ser” porque o outro é, sendo assim, somos, ou seja, a educação-ubuntu, pode ser uma saída para esse quadro tão desprovido de valores e artificialmente imposto pelo neoliberalismo.

Referencias bibliograficas


FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2018. The State of Food Security and Nutrition in the World 2018. Building climate resilience for food security and nutrition. Rome, FAO. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO.

Ramose, Mogobe B. African Philosophy Ubintu. Harare: Mond Books, 1999, pag. 49 – 66. Tradução Arnaldo Vasconcelos.

Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire – 53ª ed. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

Mattei, Lauro. POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À FOME NA AMÉRICA LATINA: evidências a partir de países selecionados – PESQUISA & DEBATE, SP, volume 19, número 1 (33) pp. 85-101, jan./jun. 2008.1.


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