Sr. Carlos, ou “Seu”
Carlos, estava na janela de seu apartamento. O dedo indicador da mão esquerda
estava sobre a boca e o nariz, enquanto o dedão apoiava o queixo. Para sustentar
e manter o cotovelo na altura das costelas, ele usava a mão direita em forma de
cuia. Já estava de pijamas, azul claro, limpos e cheirando a amaciante. Ah! o capacete
com viseira de policarbonato estava na cabeça. Não era importante saber o que
significava o “poli”, muito menos o “carbonato”. O vendedor assegurou que a
lente era inquebrável. Os tiros de borracha da tropa de choque seriam incapazes
de cegá-lo, como acontecera com uma garota na semana passada. Com interesse, acompanhava
os protestos na avenida abaixo, quando a primeira bomba de efeito moral,
lançada pela polícia, explodiu.
Em poucos segundos,
novas bombas. A fumaça irritante do gás lacrimogêneo dispersava a multidão de
manifestantes que haviam feito uma barreira com pneus em chamas. Alguns, mais
resistentes e ousados, talvez, um pouco mais temerários, cobriam o rosto com um
pano que poderia estar úmido e revidava arremessando pedras. Arsenal este que
era fornecido por uma caçamba de entulho.
Era impossível
resistir. Cartazes e faixa com palavras contra o impeachment da presidenta
Dilma foram abandonados em meio ao corre-corre por ar fresco. A polícia
disparou balas de borracha para que a dor provocada pelo impacto informasse
quem comandava as ruas. A tropa de choque avançou. Como os legionários romanos,
batiam seus cassetetes nos escudos no intuito de intimidar e “tocar terror”.
Malandramente, “Seu”
Carlos já havia ligado “o furação”, um ventilador comprado essa tarde nas Casas
Bahia e fazia tanto barulho quanto maior era a velocidade. O estrondoso ruído
não incomodava. O aparelho atendia ao fim pelo qual foi adquirido. Posicionado,
contra a janela, não permitia que a fumaça lacrimejante entrasse.
Sentia-se estrategicamente
posicionado e até feliz por ter tomado tanta medidas de segurança para assistir
em primeira mão, o confronto. Lembrou-se do tempo, em que assistia as corrida
de Fórmula 1. Não porque fosse um fã do esporte, mais pela possibilidade de ver
um acidente como o que ceifou a vida de alguns.
Protegidos pelos escudos,
a tropa de choque removeu os pneus e liberou passagem para um tático móvel. Um
jovem correu em direção aos policiais e arremessou uma rosa. Um policial,
rapidamente a pegou. Ergueu-a e mostrou para seus irmãos de farda. Seus olhos crisparam de ódio, talvez por causa
dos espinhos. Pela afronta.
Eis que um tático
móvel, também chamado de camburão, acelerou contra o lanceiro de rosas. O jovem
correu. O veiculo se aproximava. O jovem continuava a correr. O veículo o
atropelou, pelas costas. Assim, como se ele fosse um nada. O policial que pegou
a rosa aproximou-se o jovem caído no asfalto e a depositou sobre o seu peito.
Atônito, “Seu” Carlos
só acreditou porque viu. Se alguém tivesse contado, ele duvidaria. O corpo
ficou lá, estirado no chão, com a rosa. Em sua mente, a imagem capturada,
instantes atrás por seus olhos, foi substituída pela lembrança de um chinês,
chamado de “rebelde desconhecido”, que no dia 5 de maio de 1989, parou 14
tanques que avançavam pela Avenida Chang'na, na China. Sob a mesa de centro
do apartamento, um jornal velho relatava como a população turca paralisou um
golpe de estado. A capa do tabloide era um homem deitado à frente de um tanque.
“Seu” Carlos olhou
para a fotografia do jornal. “Será que os soldados chineses e turcos conhecem
mais de direitos humanos que os policiais paulistanos?”
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