segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Pijamão, a rosa e o ventilador


Sr. Carlos, ou “Seu” Carlos, estava na janela de seu apartamento. O dedo indicador da mão esquerda estava sobre a boca e o nariz, enquanto o dedão apoiava o queixo. Para sustentar e manter o cotovelo na altura das costelas, ele usava a mão direita em forma de cuia. Já estava de pijamas, azul claro, limpos e cheirando a amaciante. Ah! o capacete com viseira de policarbonato estava na cabeça. Não era importante saber o que significava o “poli”, muito menos o “carbonato”. O vendedor assegurou que a lente era inquebrável. Os tiros de borracha da tropa de choque seriam incapazes de cegá-lo, como acontecera com uma garota na semana passada. Com interesse, acompanhava os protestos na avenida abaixo, quando a primeira bomba de efeito moral, lançada pela polícia, explodiu.

Em poucos segundos, novas bombas. A fumaça irritante do gás lacrimogêneo dispersava a multidão de manifestantes que haviam feito uma barreira com pneus em chamas. Alguns, mais resistentes e ousados, talvez, um pouco mais temerários, cobriam o rosto com um pano que poderia estar úmido e revidava arremessando pedras. Arsenal este que era fornecido por uma caçamba de entulho.

Era impossível resistir. Cartazes e faixa com palavras contra o impeachment da presidenta Dilma foram abandonados em meio ao corre-corre por ar fresco. A polícia disparou balas de borracha para que a dor provocada pelo impacto informasse quem comandava as ruas. A tropa de choque avançou. Como os legionários romanos, batiam seus cassetetes nos escudos no intuito de intimidar e “tocar terror”.

Malandramente, “Seu” Carlos já havia ligado “o furação”, um ventilador comprado essa tarde nas Casas Bahia e fazia tanto barulho quanto maior era a velocidade. O estrondoso ruído não incomodava. O aparelho atendia ao fim pelo qual foi adquirido. Posicionado, contra a janela, não permitia que a fumaça lacrimejante entrasse.

Sentia-se estrategicamente posicionado e até feliz por ter tomado tanta medidas de segurança para assistir em primeira mão, o confronto. Lembrou-se do tempo, em que assistia as corrida de Fórmula 1. Não porque fosse um fã do esporte, mais pela possibilidade de ver um acidente como o que ceifou a vida de alguns.

Protegidos pelos escudos, a tropa de choque removeu os pneus e liberou passagem para um tático móvel. Um jovem correu em direção aos policiais e arremessou uma rosa. Um policial, rapidamente a pegou. Ergueu-a e mostrou para seus irmãos de farda.  Seus olhos crisparam de ódio, talvez por causa dos espinhos. Pela afronta.

Eis que um tático móvel, também chamado de camburão, acelerou contra o lanceiro de rosas. O jovem correu. O veiculo se aproximava. O jovem continuava a correr. O veículo o atropelou, pelas costas. Assim, como se ele fosse um nada. O policial que pegou a rosa aproximou-se o jovem caído no asfalto e a depositou sobre o seu peito.

Atônito, “Seu” Carlos só acreditou porque viu. Se alguém tivesse contado, ele duvidaria. O corpo ficou lá, estirado no chão, com a rosa. Em sua mente, a imagem capturada, instantes atrás por seus olhos, foi substituída pela lembrança de um chinês, chamado de “rebelde desconhecido”, que no dia 5 de maio de 1989, parou 14 tanques que avançavam pela Avenida Chang'na, na China. Sob a mesa de centro do apartamento, um jornal velho relatava como a população turca paralisou um golpe de estado. A capa do tabloide era um homem deitado à frente de um tanque.


“Seu” Carlos olhou para a fotografia do jornal. “Será que os soldados chineses e turcos conhecem mais de direitos humanos que os policiais paulistanos?”

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